Junte o olhar (bondoso) da avó. E a sua sopa de cenoura; sempre. E os mesmos episódios, contados de forma diferente, pelo avô, quando agarrava, com a sua mão grande, a nossa, pequena, e a “aconchava” como só ele sabia fazer. Adicione a forma – trapalhona – como o pai fazia de dinossauro, correndo pela casa. E o colo (quentinho) da mãe. Associe uma pitada das cantilenas que alguém nos trauteou e que nos ficaram, para sempre, no ouvido. E as histórias, claro; e as historietas. E as “gracinhas” que fizemos. E o “álbum” das patetices que alguém guardou só para nos embaraçar. Acrescente uma pitada dos medos da mãe (quando trovejava, por exemplo). E os seus desabafos (e o tom, esbaforido, com que ela os fazia). E o jeito – acalorado! – como resmungava, e se esganiçava, e nos ameaçava com um colégio interno. E nunca se esqueça de, a preceito, juntar o modo como ela acabava os dias a pegar-nos no coração, pela mão, e a contar-nos uma história com o olhar. E terminava a afagar-nos o cabelo (com os seus olhos, límpidos, onde parecia caber a luz das estrelas). Acrescente os dias de mau feitio do pai. E a forma como ele, tão depressa, parecia interminável (de tão grande) e capaz de meter medo aos medos, como, a seguir, rebolava no chão e fazia de conta que o aleijávamos só para acabar por ganhar a guerra das almofadas. Junte, a gosto, o rebuliço (ruidoso) das noites da consoada. E a forma assustada como dissemos “Olá!…” ao Pai Natal, por trás dumas pernas mais à mão, sem repararmos que ele era o Tio Alberto embrulhado no robe da avó e com barbas de algodão. E condimente com uma mão cheia de especiarias, “costuradas” pelos gestos que se trocam numa família e que, apesar de parecer que ninguém repara, fazem parte de nós, para toda a vida. Depois, deixe que tudo ganhe gosto, pelo tempo indispensável. A seguir, pegue em todos os condimentos, com delicadeza, e dê-lhes uma “cama”. Acondicione-os, de forma a que todos tenham espaço para se espreguiçarem uns para os outros. E deixe que os sabores se misturem. Embrulhe tudo, de seguida, numa espécie de película – muito fina! – que, como se fosse uma levedura, faz com que fermente todo o cozinhado. E não se esqueça do “quanto baste” duma espécie de sal que se desenvolve em nós quando crescemos com a sensação de tudo ter acontecido antes, ainda, “da maldade ter nascido”. Depois, cozinhe com delicadeza. E sem pressa! Finalmente, depois de cozinhado, deixe apurar o tempo que sinta que dará a tudo um toque que se guarda para a vida toda. Depois, feche os olhos. Respire fundo. E deixe que se solte o aroma, inimitável, daquilo que dá um paladar único e insubstituível a tudo o que só um sabor que faz parte da família nos aconchega. E sirva; de forma generosa. Acompanhe com o que de mais doce a sua memória lhe aprouver. Com a certeza de que, quanto mais se degusta, mais o paladar se apura. E, com o tempo, mais os sabores que se sentem, se soltam. De forma sempre nova. Por último, saboreie. E desfrute-os. As receitas de família dão-nos – sempre! – aquilo que só o que é único, e que passa de geração em geração, nos consegue trazer. E repita. Repita, sempre. Repita, muito! E descubra que só mesmo elas são de comer e de “chorar” por mais.
Eduardo Sá